Como se proteger contra desinformação
Em 2021, os professores da Universidade de Washington Carl T. Bergstrom e Jevin D. West lançaram o livro “Calling Bullshit”, cujo subtítulo, em tradução livre, é: “A arte do ceticismo em um mundo orientado a dados”. A proposta do livro é fornecer subsídios ao leitor para consumir e pensar criticamente sobre o uso de dados e modelos que são usados diariamente como evidência para fazer-nos consumir produtos e/ou pensar e tomar alguma ação.
Para isso eles definem o termo “bullshit” (algo como besteira, desinformação ou idiotice em português) como sendo:
Uso de linguagem, números, gráficos e outras formas de apresentação destinadas a persuadir ou impressionar o público, distraindo-o, sobrecarregando-o ou intimidando-o com um flagrante desrespeito pela verdade, pela coerência lógica ou pela informação que está realmente sendo transmitida.
O mau uso de dados (o equivalente ao “bullshit” do livro) não é algo novo. Políticos sempre foram conhecidos por mentirem descaradamente e agências de marketing e startups sempre inflaram ou embelezaram números para nos fazer acreditar em seus produtos. Mas com a difusão das redes sociais e inteligência artificial (com modelos que conseguem gerar textos e imagens), a necessidade de se proteger e saber pensar criticamente sobre o que nos é dado como verdade diariamente tornou-se cada vez mais importante.
Para ilustrar esse ponto, lembre-se da época das eleições ano passado e a quantidade de fake news que surgia diariamente. Se você se empenhou para desmentir alguma a alguém você deve ter sentido na prática aquilo que o cientista da computação Alberto Brandolini postulou em 2014:
A quantidade de energia necessária para refutar uma idiotice [“bullshit”] é uma ordem de grandeza maior do que a necessária para produzi-la
Em outras palavras, desinformação demanda muito menos trabalho e inteligência para criar do que para esclarecer e se espalha com uma velocidade muito maior do que os esforços para combatê-la.
Atualmente há três grandes frentes de atuação contra desinformação: uso de tecnologia, regulamentação governamental e educação. A primeira refere-se ao uso de tecnologias como a própria inteligência artificial para detectar desinformação. Esse é um campo novo e que enfrenta enormes desafios, que vão desde como desenvolver modelos que sejam altamente eficazes em separar notícias falsas de verdadeiras, passando por como mantê-los sempre relevantes e atualizados com os novos fatos do mundo que ocorrem minuto a minuto. Isso faz com que esses modelos demandem um esforço gigantesco de constante retreino e avaliação. Já a regulamentação governamental enfrenta sérios desafios de ordem subjetiva como a definição do que é desinformação de acordo com a lei, passando por como órgãos como o Supremo Tribunal Federal a interpretam e atuam com base nela. Basta lembrar algumas decisões polêmicas tomadas também na época das eleições do ano passado e que geraram muita repercussão pela falta de transparência e subjetividade. A regulamentação é certamente uma ferramenta importante mas que não resolverá o problema sozinha e ainda demanda tempo para atingir o nível de maturidade necessário para se tornar confiável à sociedade.
Resta o pilar da educação, que junto com Bergstrom e West acreditamos ser o ponto fundamental no combate a desinformação com mau uso de dados. Com conhecimento é possível que cada indivíduo se empodere para ajudar a si mesmo e à comunidade ao seu redor. Para isso os autores propõe uma estrutura de pensamento com 7 pilares para desenvolver pensamento crítico frente à desinformação com uso de dados:
Sempre questione a fonte de informação
Aja como um jornalista, que é treinado para sempre fazer 3 perguntas:
Quem está me dizendo isso?,
Como ele/ela sabe disso? e
O que esta pessoa está tentando me vender?
Tome cuidado com comparações injustas
No livro “Factfulness”, Hans Rosling narra uma reunião sobre mudanças climáticas onde um delegado chinês questiona a forma como as emissões de carbono são frequentemente medidas e reportadas. Até aquele momento a China estava sendo duramente criticada por ter uma das maiores emissões, em números absolutos, de carbono. No entanto, o representante chinês argumenta que medir as emissões totais não é justa, pois não leva em conta o tamanho da população de cada país. Em uma base per capita (por exemplo, olhando kg CO2 emitido/ habitante ao invés de simplesmente kg CO2 emitido), as emissões de muitos países desenvolvidos, como os EUA, são maiores do que as da China. Rosling usa esse exemplo para ilustrar um ponto mais amplo sobre “Factfulness”: a importância de olhar para os dados de forma contextualizada ao tomar decisões ou formar opiniões. Ao considerar as emissões de carbono (ou qualquer outra medida global), é crucial levar em conta as diferenças de escala, como o tamanho da população, para obter uma compreensão mais precisa e justa da situação.
Se um número parece muito bom ou muito ruim para ser verdade é porque provavelmente há algo errado
Em agosto de 2023 uma pesquisa gerou polêmica nas redes sociais, especialmente no LinkedIn. Um paper de pesquisadores do MIT afirmava que a produtividade de trabalhadores remotos era de 18% menor do que quem trabalhava no escritório. Com base apenas na manchete, muitas pessoas passaram a compartilhar o artigo como se isso colocasse fim à questão: o trabalho remoto é improdutivo. Porém ao ler o estudo pode-se verificar que a amostra estudada foi de trabalhadores recém-contratados na Índia que foram designados aleatoriamente para trabalhar em casa ou no escritório. O trabalho deles consistia em manualmente fazer entrada de dados em um determinado sistema. Os pesquisadores tiravam fotos dos indivíduos a cada 15 minutos através da camera do laptop e a principal métrica usada para medir a produtividade foi o número de entradas corretas por minuto. No fim, o número encontrado de 18% é relativo às pessoas no escritório que conseguiram digitar entradas corretas por minuto, 18% a mais do que quem estava casa. Portanto, se o seu trabalho não envolve digitar coisas o mais rápido possível sem errar, esse resultado não se aplica à sua realidade. A lição aqui é: sempre busque a fonte da informação. Na internet muitas vezes a informação que chega até nós já foi reescrita e reprocessada por diferentes pessoas.
Pense em ordens de magnitude para entender a dimensão de um número
Imagine dois terremotos, um medindo 4.0 e outro 6.0 na escala Richter. À primeira vista, pode parecer que o terremoto de magnitude 6.0 é 50% mais forte que o de 4.0. No entanto, devido à natureza logarítmica da escala, a realidade é muito diferente. Um terremoto de magnitude 6.0 é na verdade 100 vezes mais intenso que um de magnitude 4.0 (10 vezes mais intenso para cada aumento de magnitude). Este exemplo destaca a importância de compreender o contexto e a escala dos números. No caso da escala Richter, um aumento aparentemente pequeno na magnitude representa uma diferença significativa na energia liberada, algo crucial para a avaliação de riscos e preparação para desastres naturais.
Evite tornar-se vítima de viés de confirmação
Viés de confirmação é a tendência a perceber, acreditar e compartilhar informações que são consistentes com crenças pré-existentes. Quando uma afirmação confirma nossas crenças sobre o mundo, nós somos naturalmente mais propensos a aceitá-las como verdade e menos a questioná-las e desafiá-las. O viés de confirmação é um dos principais contribuintes para a disseminação de desinformação na internet. Afinal, por que checar algum fato que você “sabe” que é verdade só porque reforça uma crença pré-existente?
Considere múltiplas hipóteses quando confrontado com um fato desconhecido. Só porque alguém tem uma explicação para um fenômeno não significa que essa seja a explicação correta. Isso tornou-se especialmente importante com a difusão das redes sociais e do surgimento dos “influenciadores digitais” que valem-se de alimentar uma imagem de autoridade em determinado âmbito sem necessariamente ter as credenciais necessárias para tanto. Se não há clareza sobre alguma notícia ou afirmação sendo feita, ou se a pessoa que está fazendo não é uma referência no assunto sempre dê o benefício da dúvida.
Em suma, a batalha contra a desinformação é uma jornada contínua que requer vigilância, educação e pensamento crítico. Enquanto tecnologias e regulamentações podem oferecer algumas soluções, é através do empoderamento individual e coletivo pelo conhecimento e ceticismo saudável que podemos realmente nos proteger. Bergstrom e West nos mostram que, ao questionar fontes, buscar contexto, e evitar viés de confirmação, nos armamos com as ferramentas mais eficazes para discernir a verdade em um mundo saturado de dados. Portanto, ao nos depararmos com informações duvidosas, devemos lembrar que a responsabilidade de avaliar e buscar a verdade reside, em grande medida, em cada um de nós.